quarta-feira, 3 de março de 2010
VILLA-LOBOS: MUITO ALÉM DA VITÓRIA RÉGIA E DO VATAPÁ
Muito além da vitória-régia e do vatapá
Villa-Lobos deixa de ser ícone nacionalista para ressurgir como grande compositor moderno
Carlos Haag
(leia a reportagem completa em:
http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=4057&bd=1&pg=1&lg= )
Com boa dose de raivosa ironia, Mário de Andrade desancava certo tipo de brasileirismo musical que via permeado de “sensações fortes, vatapá, jacaré, vitória-régia”. Infelizmente para muitos, o interesse pela música de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) estaria justamente na proximidade com que o compositor, pleno de ritmos e melodias, teria chegado dessa exótica mistura, aparentemente uma receita tipicamente brasileira que ele dominaria bem com sua genialidade intuitiva de arrancar da terra o que era nacional. “É preciso rebater a ideia de que o maior ou o único mérito da obra musical de Villa-Lobos esteja em seu caráter nacional, identificável pela utilização de melodias folclóricas e eventuais usos de ritmos e instrumentos de música popular brasileira. Outro ponto importante é demonstrar que as qualidades de certas obras do compositor não são resultados de mero casuísmo, mas de um labor composicional sintonizado com os problemas importantes no tempo em que foram compostas e que ainda instigam os músicos de hoje”, observa Paulo de Tarso Salles, da ECA-USP, autor de Villa-Lobos: processos composicionais (Editora Unicamp, 264 páginas, R$ 50).
“Villa-Lobos é muitas vezes considerado como o ‘maior compositor das Américas’, mas esse rótulo ainda carece de substância, pois sua obra tem um mérito maior do que o mero exotismo e trouxe real contribuição à música do Ocidente, embora poucos estudiosos se debrucem efetivamente sobre essas questões”, avisa o pesquisador. “Ele é sempre citado como um gigante da música do século XX, mas nunca mereceu o cartão VIP dos compositores seminais, como Stravinsky, Schoenberg, Varèse ou Messiaen, que geram teorizações e reverberam na linguagem dos compositores do século XXI. Em geral, Villa-Lobos é o filho da natureza, que cavoucou a terra e encontrou o talismã da identidade nacional, que o tornou maior entre os maiores de uma arte que intuímos ser importante, mas que ainda não nos pertence”, concorda o violonista Fábio Zanon, professor do Royal College of Music e autor de uma recém-lançada biografia do compositor. Efetivamente, enquanto seus contemporâneos merecem análises infindas, Villa ganhou um lugar periférico em que figura como caso exótico, um latino-americano cuja intuição teria levado às vezes a resultados sublimes, mas quase sempre desiguais. “Ele, porém, teve várias mudanças de estilo em sua vida que deixam entrever não um ‘dândi tupiniquim’, mas um compositor que se autoimpunha uma pesada carga de trabalho e estudo, o que contradiz o mito em torno de seu autodidatismo e facilidade, no mau sentido, de invenção”, analisa Salles. Entre 1900 e 1917, temos o jovem compositor em sua fase inicial adotando modelos franceses e wagnerianos, buscando ser reconhecido pelos músicos e críticos brasileiros. A partir do contato em 1917 com o compositor Darius Milhaud, a cantora Vera Janacopoulos e o pianista Arthur Rubinstein, todos no Rio de Janeiro, a música de Villa apresenta formas e estruturas mais livres e, em 1923, o grande marco foi a viagem a Paris, onde estabelece um diálogo com a música dos modernos, em especial com Stravinsky. A terceira fase, nos anos 1930, é a da volta ao Brasil, quando, aparentemente para garantir a sobrevivência, em pleno regime varguista, o compositor incorporou a imagem que se queria dele como um símbolo da cultura brasileira. A partir de 1948, a fase final, quando recebe o diagnóstico do câncer, Villa, para fazer frente às despesas crescentes com tratamentos de saúde, passa a atender encomendas e a se apresentar nos EUA e na Europa.
Tantas fases e tantas mudanças não seriam uma tarefa de amador, tampouco de um autodidata casual. “Quem vê Villa como um compositor de pouca técnica, que comporia sua música tal qual a anarquia idealizada de selvas tropicais, que teria pouquíssimo domínio da forma e das estratégias composicionais da tradição, parte de uma visão quase sempre baseada em gagues plantadas pelo próprio Villa-Lobos, ou que simplesmente tentam fundamentar-se em uma falta de conhecimento quanto às obras e aos compositores com os quais a música de Villa-Lobos dialogava”, avalia o compositor e pesquisador Sílvio Ferraz, da Unicamp. “Seus diálogos foram marcados por encontros: Bartók, Varèse, Milhaud, Revueltas. Todos defensores de uma estética musical de cunho experimental. Villa dialogava com esses compositores que, por sua vez, traziam, assim como ele, muito da força musical dos povos de seus países. Que força seria essa? Não aquela que se imita facilmente, numa simplificação melódica à qual muitos acabaram por ceder, mas a força sonora, a força inventiva desses povos, no modo de cantar, de tocar um instrumento e na maneira como a música é feita com aparente facilidade e rapidez. Villa foi um compositor genuinamente brasileiro, no sentido de que teve de inventar o Brasil musical que lhe cabia.” Daí o aspecto acumulativo e não excludente da pesquisa de Salles, que revela ainda mais a riqueza musical do compositor. “Não pretendi substituir a já tão bem conhecida apreciação da identidade nacional presente na obra de Villa-Lobos. Meu objetivo foi apenas complementá-la com mais um aspecto da multifacetada obra do mais importante compositor brasileiro, cuja música seja possuidora de atributos suficientes para que, através dela, seja possível estudar algumas das técnicas de composição em voga na primeira metade do século XX. As partituras de Villa revelam, além da óbvia preocupação com uma identidade nacional, a inquietação do compositor em relação a procedimentos que se tornaram acadêmicos, destituídos de significação para a música de seu tempo”, observa. “Isso se traduz em sua concepção peculiar de forma, em que os sons circulam sem a tradicional noção do desenvolvimento beethoveniano, mas de acordo com suas potencialidades acústicas.” O pesquisador, analisando os processos composicionais de Villa-Lobos, agrupou-os em três grandes modos de transformação do material composicional.
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